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#repost Curta metragem Rizoma

Em outubro de 2016, o curta metragem Rizoma foi exibido durante um evento preparatório para I Simpósio Internacional Subjetividade e Cultura Digital. As pesquisadoras Nádia Láguardia e Juliana Tassara (do laboratório Além da Tela) produziram um texto para discutir sobre o filme.

Se você não assistiu ao curta ou não leu texto, aqui vai a oportunidade de você fazer as duas coisas. Garantimos que vai valer a pena! 😉

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O filme Rizoma surge de um convite feito pelo Coletivo Ferpa a pessoas comuns. Elas são convidadas à, diante de suas webcams, interagir com um bailarino, seguindo sua coreografia, em tempo real. Através das imagens capturadas pelos participantes, entramos em suas casas. As imagens, sem nenhum tratamento, nos levam para dentro de salas, banheiros, áreas de serviço. O filme causa um desconforto. A intimidade ali revelada sem nenhum véu que pudesse cingir o objeto gera angústia. Os corpos desajeitados tentando acompanhar o coreógrafo, o ambiente doméstico ao fundo nos dando a sensação de que estamos invadindo a casa do outro. Numa das tomadas, alheio a tela, um gato brinca com um vaso de planta. Apesar do desconforto, ou talvez com o desconforto, quando o filme termina, a vontade é de vê-lo de novo. E de novo e de novo e de novo, como uma tentativa de apreender algo que está ali, mas é inapreensível.

Lacan, em seu seminário11, evoca o mistério das cavernas de Altamira e suas pinturas rupestres de rara beleza. Ele coloca: “Pode ser que aquilo que descrevemos como sendo esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a coisa, esclareça para nós o que resta ainda como questão, ou até mesmo como mistério” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 169).

É essa experiência que o filme nos provoca, a experiência da extimidade. A extimidade é algo que perturba o sujeito pois ela aponta o furo, por isso o sujeito se agarra as identificações. A extimidade extirpa a concepção de interior e exterior e ultrapassa a ideia de que há algo a ser tirado do exterior e introduzido no interior. A extimidade, então, se constitui como o lugar de um buraco, de um sujeito dividido. Esse buraco é um lugar de falta, onde não há nada e que remete a falta do Outro.

E o Rizoma? Rizoma é um termo da botânica que designa uma forma de raiz, mas não a raiz tradicional, aquela que fica no subterrâneo abaixo do caule e da copa. O rizoma cresce para todos os lados, podendo ser aéreo. O rizoma faz com que os brotos se ramifiquem tornando-se bulbos ou tubérculos. Deleuze se apropria do termo e o aplica a filosofia.  Para ele, o rizoma é um modelo de resistência estético-politica. O rizoma pode fugir, se esconder, “Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas”. E mais, o rizoma pode ser rompido em qualquer lugar.

Rizoma foi proposto aos participantes como uma “brincadeira” – tentar seguir uma coreografia através da webcam. A pergunta que estava no ponto de partida do grupo era: Será que assim, só com o corpo, sem palavras, é possível acompanhar? No filme, os corpos se esticam, se encolhem, caem no chão na tentativa de seguir o mestre. Um espelho ao fundo em uma das tomadas nos lembra que é um computador que está do outro lado. A rede enlaça palavras e imagens, conectando-as. Como enlaçar os corpos através da rede?O que aqueles corpos estão fazendo? Quem está ali?

Para Paula Sibilia, a visibilidade é hoje a condição da existência. Assim, é preciso aparecer para ser. As telas dos dispositivos da imagem não só expandem o campo da visibilidade, mas permitem construir uma imagem de como se quer “parecer ser”. Como se quer “parecer ser” hoje?

David Le Breton afirma que algumas correntes da cultura cibernética sonham com o desaparecimento do corpo. Ele é transformado em artefato, excesso, do qual é preciso se livrar. A realidade virtual proporciona aos internautas o sentimento de estarem presos a um corpo estorvante e inútil do qual precisam cuidar, enquanto a vida deles seria tão feliz sem esse aborrecimento.Para alguns, o corpo não está mais à altura das capacidades exigidas na era da informação.

“Compartilhar” é a palavra que aparece na última cena de rizoma. Se por um lado o corpo é visto por alguns adolescentes como um estorvo, a imagem é usada de forma apaixonada. “A imagem circula, se é baixada pelos amigos, ou é apagada, se não convém a um ou a outro. Ela se torna líquida, instrumento de comunicação, de autoconfirmação, de adestramento do corpo, de sua relação com o mundo.”

Para Andréa Guerra, “Para chegar ao mundo e funcionar no intercâmbio entre os homens, a experiência de corpo precisa ser traduzida em palavras.[…] O político não equivale ao subjetivo, assim como o mais íntimo não se manifesta diretamente no mais exterior.” Aí, uma perda se opera, e é aí que o sujeito é afetado enquanto corpo que vive.

Voltemos para a pergunta do coletivo Ferpa: sem palavras, é possível acompanhar? Lacan comenta: “Falo com meu corpo e sem saber. Logo digo sempre mais do que sei”. O corpo goza no silêncio, mas alguém fala através dele. O falasser se expressa, mesmo sem saber, através do corpo.

Mas o Filme do Coletivo Ferpa foi feito há mais de 6 anos. De lá pra cá muita coisa mudou. Os blogs, antes principal meio de expressão na web, vêm cedendo lugar para o youtube e o instagram. Os chamados youtubers e instagramers são os ídolos de nossos adolescentes, são o que eles querem ser quando crescer, porém, sem crescer, já que são, majoritariamente, jovens. A imagem vem, cada vez mais, ocupando as telas dos computadores e smartfones. O que fazer, então com esse corpo pulsional, corpo que goza no silêncio e que está lá, vidrado na tela, mas, contudo e sobretudo, para muito além da tela?

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Félix (1995). Mil platôs: capitalismo e esquisofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1995. v. 1.

GUERRA, Andréa Maris Campos. O estrangeiro: topos do adolescente em conflito com a lei. Belo Horizonte: Mimeo, 2004.

LACAN, Jacques. Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janiero: Jorge Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. Seminário 20, Mais Ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (p.161).

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Antropologia e sociedade. São Paulo: papiros, 2003.

SIBILIA, Paula. O Show do Eu. A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.

 

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